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  1. Nov 2020
    1. as telas de Maria Auxiliadora (e de alguns de seus colegas da praça da República) constituem um diário pessoal daquela que é a história do Brasil para muitas pessoas: o exílio físico e simbólico da população afrodescendente, e a diluição do número e da importância dos espaços de culto afro-religioso, em plena ditadura militar no Brasil (1964-85)
    2. Meus primeiros óleos, em 1968, eram chapados, sem relevo. No começo de [19]68 não havia relevo, mas nos fins de [19]68 eu comecei a fazer relevo com cabelo. Primeiro usando o próprio óleo para fixar, porque nessa época eu não conhecia a massa da Wanda. Pegava a tinta bem grossa e imprimia o cabelo no meio da tinta. Eu pegava cabelo natural, muitas vezes o meu mesmo, pois muitas vezes eu pinto crioulos. Tive essa ideia quando estava pintando um quadro grande de candomblé, em 1968.
    3. Apesar de distintas, as duas publicações fazem parte do esforço do meio cultural brasileiro em renovar a crítica de arte, dando-lhe instrumentos capazes de abordar as particularidades e os desafios das produções populares. Se a publicação de Flávio de Aquino, de viés linear e historicista, contextualiza alguns desafios estéticos daquele período,[32] e se refere ao trabalho de Maria Auxiliadora como “uma das mais excepcionais manifestações artísticas de pintura primitiva, não apenas no Brasil, mas mesmo no mundo”,[33] é contudo em Mitopoética de 9 artistas brasileiros que se desenha uma abordagem inovadora das “artes do povo”.
    4. Para Bardi, a arte provinda de indivíduos das camadas populares, “realizada pelos negros, indígenas e mulheres imigrantes do Nordeste do Brasil, personagens colocados às margens na sociedade brasileira”,[21] era a expressão de “uma situação de pobreza e isolamento”, porém sem se ver aí um tom de “denúncia ou de crítica ao processo histórico que a havia gerado, antes pelo contrário, de valorização de um saber, ponto de partida para a criação”.
    5. É a “cultura popular” que pode desafiar a “autonomia estética”, uma “convenção artística fundamental da modernidade”.[15] Assumindo um caráter eminentemente político, as culturas populares violam “os ideais de pureza e integridade”, que caracterizam a obra de arte autônoma, e desarranjam as hierarquias com as quais a “arte erudita” insiste em operar. Para Shusterman, a cultura popular tem a capacidade de disseminar-se na vida cotidiana e operar como um “estímulo a uma reforma construtiva” do homem, ao invés de permanecer como um “simples ornamento” ou uma “alternativa imaginária para o real”
    6. De saída, refira-se a profusão linguística, ou seja, a abundância de categorias — arte ingênua, popular, virgem, espontânea, ínsita, visionária, outsider, naïf, brut, raw, folk etc. — que envolve estes tipos de trabalho. Sem se ajustarem de modo cômodo às produções a que fazem referência, tais categorias sustentam um ponto de vista redutor e acabam por opacificar as qualidades expressivas dos objetos e das obras.
    7. Em algumas dessas manifestações artísticas do início do século 20, em que o primitivo e o moderno se entrelaçam mais intimamente, sente-se o sentido mais agudo das contradições internas da sociedade ocidental. O primitivismo estava relacionado de maneira paradoxal ao questionar os pressupostos da sociedade capitalista e industrial: contestar a ideologia do progresso, ao mesmo tempo em que desejava ardentemente um mundo novo e o fim dos antigos privilégios e preconceitos.[5]

      Guy Brett

    1. A pintora mineira, de Campo Belo, filha mais velha de uma lavadeira (que nas horas vagas bordava e esculpia em madeira) com um trabalhador braçal em ferrovia, nasceu em 1935 e cresceu numa família de 18 irmãos. Entre a obrigação de tingir as linhas que a mãe usava para bordar e os desenhos que fazia em carvão nas paredes de madeira da casa, ia descobrindo os tons do colorido e uma forma de se relacionar com o mundo através de imagens.

      Como ela começou a pintar

    2. O câncer generalizado lhe corroía o corpo e ela tentava combatê-lo pintando. Imprimia na tela seu tormento e sua expectativa de passar a eternidade entre anjos. Depois de várias cirurgias, faleceu em 1974. Suas pinturas, produzidas em apenas sete anos de vida, estão em museus, galerias e em importantes coleções no Brasil e fora dele. Sob o travesseiro, na cama em que morreu, havia uma obra inacabada. Pintou até os últimos instantes, jamais se acomodou diante da miséria ou da dor.
    3. Mudar para São Paulo não melhorou muito a qualidade de vida daquela família enorme, mas deu à Auxiliadora a oportunidade de vivenciar a efervescência artística que, nos anos 60, girava em torno do poeta, teatrólogo e agitador cultural, Solano Trindade, numa cidadezinha próxima da capital, que foi rebatizada de Embu das Artes.
    1. Aqui, podemos pensar no argumento feminista de Carol Hanisch nos anos 1960: “o pessoal é político”. Num contexto e numa cultura em que, na história da arte, as coleções de museus são dominadas por representações e gostos eurocêntricos, brancos e elitistas, a obra de Maria Auxiliadora ganha o sentido de resistência.
    1. “A obra de Maria Auxiliadora não é política como um manifesto, mas como materialização da expressão pessoal de uma mulher negra que encontra sua voz olhando para perto, para si e para os seus, ao tratar de seus desejos e de sua inserção no mundo”, escreveu Renata Bittencourt, diretora do Instituto Brasileiro de Museus do Ministério da Cultura, em livro sobre a artista a ser lançado com a exposição.

      O livro tem o mesmo nome da exposição: "Maria Auxiliadora: vida cotidiana, pintura e resistência". Foi escrito por vários outros autores além de Renata.

      Adriano Pedrosa; Amanda Carneiro; Artur Santoro; Fernando Oliva; Frederico Morais; Isabel Gasparri; João Candido Galvão; Karen E. Quinn; Lélia Coelho Frota; Lilia Moritz Schwarcz; Lucienne Peiry; Mário Schenberg; Marta Mestre; Mirella Santos Maria; Pietro Maria Bardi; Renata Bittencourt; Renata Aparecida Felinto dos Santos; Roberto Canduru

    2. Fernando Oliva, curador da exposição. “Esse tipo de perspectiva é preconceituosa, pois reduz, delimita e contamina a relação direta que o público pode ter com a obra da artista. Maria Auxiliadora não é só uma grande artista autodidata, ela é uma das maiores artistas brasileiras do século xx.”

      Ele é justamente contra essa mania de olhar só a vida da artista, desconsiderando a obra - o que o autor da matéria chama de "visão hagiográfica" Mas eu acho que o ruim mesmo não é falar só da vida dela, mas falar da vida dela justamente por acreditar que a arte dela não tem técnica, é "infantil", "primitiva" ou "popular", como descrita no outro jornal, e por isso, não vale a pena discorrer sobre.

    3. A ausência de formação acadêmica e o não domínio de técnicas tradicionais de pintura — perspectiva, volume e claro-escuro — colaboraram para que sua obra fosse coberta de rótulos como “primitiva”, “popular” ou “naïf”, títulos reservados a artistas autodidatas e inclassificáveis, que acabam confinados na periferia do mercado de arte.